Artigo da Profa. Dra. Giane A. Sales S. Mota, da Devir Educacional
Em janeiro de 2020 a crônica tomou espaço em minha vida, foi a ela que recorri quando a latência de meu dia a dia precisava ganhar forma, afinal minhas inquietações eclodiam pelos poros, buscavam vazão.
Mas em meio ao rés do chão uma seleção já se instituía, a seleção que há muitos anos é fruto de meu olhar cuidadoso, de meu estudo e profissão. Escolhi a infância como o meu lugar de fala. Não a minha, como um ato autobiográfico, mas a de muitos outros, que junto ao meu filho sentem uma geração.
De modo não diferente, entre um texto e outro, um vírus infeccioso adentrou todos as fronteiras e pôs morada por aqui. A saída para combatê-lo momentaneamente – a exclusão, o isolamento.
De uma hora para outra as crianças foram postas do portão para dentro, isoladas ou não de parte da família, isoladas de seus pares, isoladas de seu lugar coletivo – a escola.
A escola está fechada, a professora não foi! Mas diferente do título de minha tese, símbolo de resistência infantil (no início do processo de escolarização) agora a professora e os demais não estão presentes. A professora, os amigos, os nem tão amigos assim; ninguém foi, ninguém pode ir, porque não é seguro!
E quando ninguém pode ir, o que pode ser feito? Na emergência da situação adotar o possível – a EaD. Sem as máquinas adequadas, sem a banda larga estável, sem a formação, com o instinto de usuários, os professores reinventam seu papel e cumprem com a função. Por meio de inúmeros programas, aulas e atividades online eclodem Brasil afora, mas e as crianças?
Até agora, o governo federal, estados e municípios tem voltado o seu olhar para tentar legitimar uma rotina, discutem sobre dias e horas letivos, materiais, acesso aos materiais, mas ainda não foi possível contemplar a discussão sobre as crianças.
As crianças que estão vendo uma mudança ao seu redor, estão proibidas de pôr o pé na rua, estão proibidas de ficarem com seus avós e que temem, não somente pelos pais que seguem trabalhando rua afora, como também por seus pais que trabalham compulsivamente casa adentro. As crianças que presenciam lágrimas, veem o olhar triste e tenso de seus pais.
Quem está olhando para elas, por elas, mas especialmente com elas?
Mais uma vez, como é habitual na educação, todos os olhares se voltam para garantir o Chronos. Garantir a lei, garantir o direito, garantir a aula, afinal há que se garantir o ano letivo.
Parece que tudo está movido pela ideia econômica de que não se pode perder: não se pode perder a hora de trabalho pedagógico, não se pode perder tempo, não se pode ter uma escola fechada, não se pode manter uma equipe sem trabalhar – isto gera gasto, não se pode perder o calendário escolar, não se pode perder o controle, não se pode… mas deve? Deve-se perder um tanto e pouco mais de tudo isso?
Como todos os adultos, as crianças estão confusas, com medo, entediadas, perdidas nesse novo universo a qual foram direcionadas. Elas perderam a liberdade, a interação e as brincadeiras com seus pares, perderam o espaço coletivo, perderam a tranquilidade, e continuam diariamente a perder tantas outras coisas.
Afinal, todas as casas possuem o espaço adequado para as interações de todos os membros que a compõe? Os recursos estão disponíveis? Os horários estão adequados para atender as demandas de todos os familiares? Os empregos ainda resistem? A comida ainda está farta? E o álcool gel é para todos?
Se olharmos para as incertezas que envolvem nosso mundo atual, todos nós estamos perdendo. Perdemos as certezas, perdemos a paz, perdemos muitas vezes entes queridos.
E as crianças também estão conosco, perdendo diariamente. Portanto, urge primar pelo que nesse momento mais carecemos – paz interior! E nada como o Aión para garantir essa conquista.
O Aión, tempo individual, próprio a cada ser, sem cronômetro ou medida. É disso que as crianças precisam nesse momento. Mais do que uma rotina de atividades que as sobrecarrega por meio da tecnologia, com tarefas mil, links de vídeos diversos, links de filmes, metas, quiz, vídeo-aulas, vídeo que comprove suas ações, precisamos galgar um meio de conversar com elas.
Precisamos de espaço para ajudá-las a externalizar seus sentimentos, espaço de diálogo sobre o que estamos vivendo e como podemos enfrentar tudo isso.
Em vez de enchermos a rotina infantil com mil ações para segurar o tempo em nossas mãos, que agora, nesse tempo de se repensar, a escola possa assumir seu papel de formação humana, apoiando as famílias com ações de bem estar. Há que se criar canais com psicólogos, artistas, músicos, arte-educadores, poetas, autores, esportistas que ajudem a escola a promover o bem-estar das crianças.
Esta é a rotina que precisa ser explorada nesse momento, essa é a rotina que as crianças precisam vivenciar desde a primeiríssima infância. Deste modo, as ideias seriam compartilhadas com os pais que as promoveriam em seus espaços interiores e inclusive se beneficiariam com tais ações.
E quando tudo isso passar, pois creio irá passar, que as escolas e suas equipes estejam preparadas para o acolhimento não somente dos corpos infantis, mas sobretudo das emoções! Que haja o tempo de escuta, de partilha, de choro e muito, muito afeto. Porque quando tudo isso passar, haverá tempo para voltar à rotina escolar, aos conteúdos, as experiências e programações. Será o novo tempo de reconfigurar o Chronos. Mas até lá, que tal termos a coragem de dar o espaço que as crianças tanto precisam?!
Nossa Fonte: Giane A. Sales S. Mota é doutora em Educação pela Universidade de Sorocaba (Uniso), Mestre em Estudos Literários (Unesp), Especialista em Linguística do Texto e Ensino (UNESP), Especialista em Gestão Educacional, licenciada em Pedagogia e Letras-Unesp. Professora Universitária há mais de quatorze anos (Uniso e Esamc) nas áreas de linguagem e educação. Professora da Educação Básica do Município de Sorocaba – SP desde 2002. É uma das fundadoras da Devir Educacional.